Saco de Ossos

Um podcast sobre o horror, por Marcelo Miranda

47º Festival de Brasília: Notas sobre “Branco Sai Preto Fica”, de Adirley Queirós

Num de seus artigos mais conhecidos, o cineasta canadense Pierre Perrault escreveu que “aquele que se alimenta de imagens fictícias não aprende a ler a realidade de uma imagem”. Godard já havia feito o jogo de palavras no qual defendia “não uma imagem justa, mas justo uma imagem”. Em Branco Sai Preto Fica, Adirley Queirós lida com esses limites da representação: o que é imagem “real” e “fictícia”? Mais que isso: o que pode representar a memória de algo que só existe no imaginário? O personagem viajante do filme está em busca de provas que comprovem documentalmente os abusos do governo de Brasília contra populações negras e pobres da Ceilândia. Ele precisa “fabricar” essas provas, sob risco de ficar preso num limbo espaço-temporal, impotente de proteger sua comunidade. O filme se configura, então, como a reunião de imagens dessa busca: ao mostrar a Ceilândia, sua paisagem e geografia, Adirley está “fabricando” as provas daquilo sobre o que ele fala. Branco Sai Preto Fica é a materialização de um abandono e de um descaso social, cultural e econômico, mas é principalmente a prova de resistência e independência desse espaço.

Ao trabalhar as referências e imaginários da ficção científica (viagens pelo tempo e espaço, equipamentos e luzes, ambientes frios e ascéticos, geringonças movidas a sons e músicas, implantes como peças de ciborgue), Adirley Queirós não faz exatamente alegoria ou analogia. Ele de fato imprime ao filme um universo que é o seu e de seus atores transfigurado por esse imaginário, como se dando um rodopio de 360 graus em que se sai de um ponto, atravessa-se seu total contrário e retorna-se ao ponto inicial apenas para reproduzir a força da partida. Interessa menos ao filme ser uma ficção científica do que se apropriar do gênero (de seus códigos, na verdade) para fazer o relato justo (justo uma imagem) cujo índice maior de impacto está na realidade da imagem. Pensando novamente a partir da frase de Perrault: Adirley sabe do que fala e de onde fala, ou seja, ele não se alimenta de “imagens fictícias” (de fantasia pura e simples); assim, o filme se dá a ler a realidade de suas imagens, não porque elas tenham a utópica ambição de serem “verdadeiras”, mas porque elas são verdadeiras tais como surgem a cada novo plano do filme.

Se em A Cidade é uma Só?, filme anterior de Adirley, havia de característica estrutural um certo ritmo frenético, em que se delimitava logo de imediato a relação entre as origens da Ceilândia e a campanha política de Dildo, em Branco Sai Preto Fica esse ritmo se modifica. A movimentação dos personagens é mais fechada, os ambientes por onde eles circulam são intimistas e limitados, o maquinário de deslocamentos (elevadores de cadeirante, pernas mecânicas, carros adaptados, contêineres de metal, luzes de giroflex, computadores e programas de edição e transmissão sonora) são as possibilidades de eles ultrapassarem os limites impostos por uma sociedade autoritária, representada aqui pela distopia de uma Brasília que só permite a entrada mediante apresentação de um passaporte. O espaço da Ceilândia em Branco Sai Preto Fica não é mais um espaço de esperanças por mudança (no que Dildo era o receptáculo, e seu fracasso parecia tão triste quanto coerente), mas um ambiente de resignação – ainda que não-conformista nem conformado, e sim sujeito a reações extremas.

Bomba explode na cabeça e estraçalha ladrão” é o hino natural da situação armada. Cantada na voz de MC Dodô nos instantes finais, serve de moldura sonora de uma imaginária (e ilustrada) explosão da cidade. Essa explosão é uma explosão da poesia e da arte de massa. A “bomba” preparada pelos personagens é alimentada por rap, forró e sons do ambiente urbano. É isso que explode Brasília – a massa, as pessoas, a “gente normal” que as divisórias de Brasília tratam em castas e hierarquias. Adirley Queirós arquiteta com paciência seus espaços, uma Ceilândia de ficção mais verdadeira que a real (palavras roubadas de Jean-Louis Comolli ao falar do cinema de John Cassavetes), só possível de ser representada pelo cinema – não qualquer cinema, mas o de Adirley, de sua vivência e experiência, de sua consciência do que seja “justo uma imagem”. No caso, a sua imagem.

Deixe um comentário

Informação

Publicado às setembro 21, 2014 por em Críticas e marcado , , .
Guia de TI

O maior portal de cursos, capacitação e educação em tecnologia e desenvolvimento do Brasil.

Luciana Romagnolli

Arte e psicanálise.

horizontedacena

Crítica de teatro