Saco de Ossos

Um podcast sobre o horror, por Marcelo Miranda

“O Viajante”, de Paulo Cezar Saraceni: um filme luminoso e incontornável

por Marcelo Miranda
(texto originalmente publicado na revista da Academia Mineira de Letras, em junho de 2014)

É preciso colocar O Viajante no devido lugar dentro da cinematografia brasileira contemporânea: o de filme luminoso e iluminado, de peça trágica e operística, o de criação barroca e moderna que nos chega impregnada de imagens que se digladiam com nossos sentidos. A expressividade e relevância de O Viajante é tão grande quanto sua invisibilidade e descaso perpetrados por um circuito de exibição viciado num tipo de produto audiovisual que “dá certo”, moldado por parâmetros de “funcionalidade” garantida, público por vezes pouco (ou nada) exigente e espectadores em busca de elementos facilitadores e seguros. Exibido pela primeira vez no Festival de Brasília de 1998, de onde saiu com o prêmio especial do júri, O Viajante, dirigido por Paulo Cezar Saraceni, teve estreia discreta nas salas de exibição do país ao longo dos dois anos seguintes e desapareceu em seguida. Foi resgatado em sessões televisivas do Canal Brasil e através de endereços da internet que o disponibilizam, quase uma dádiva e um presente a quem quiser assistir ao filme.

O carioca Saraceni (1933-2012) demorou 36 anos para concluir a informalmente intitulada “trilogia da paixão”, iniciada em 1962 com Porto das Caixas e seguida em 1971 por A Casa Assassinada, ambos adaptados de histórias do escritor mineiro Lúcio Cardoso. O Viajante se inspira num romance inacabado de Lúcio, que fora finalizado por Otávio de Faria após a morte do autor, em 1968. Desde quando leu o manuscrito, ainda naquela época, Saraceni se encantou pela intensidade e beleza do livro. O diretor contava em todos os cantos a ambição de filmar a obra assim que possível. Por uma série de imprevistos – entre eles as dificuldades de financiamento da produção e a pressão para que fizesse um outro projeto paralelo, que acabou se tornando Anchieta, José do Brasil (1977) –, Saraceni não conseguia fazer O Viajante. De fato, ele chegou a quase perder as esperanças, conforme escreveu na autobiografia Por Dentro do Cinema Novo (ed. Nova Fronteira, 1993): “Mudei o elenco mil vezes, e mantive durante anos a ideia de filmá-lo. Mas como Lúcio [Cardoso] não acabou [o livro], talvez não seja para ser filmado”.

viajante2Contrariando sua própria desilusão, Saraceni enfim filmou O Viajante na segunda metade da década de 1990, com locações na zona da mata mineira e base principal no município de Ubá (a 290 km de Belo Horizonte) e arredores. As montanhas e paisagens características do interior do estado são a moldura ideal para os dramas católicos de Lúcio Cardoso, que ganham universalidade a partir da exacerbação de sentimentos tão própria da natureza humana. As paixões e atos extremos assumidos pelos personagens parecem se abrigar em algum lugar distante dos olhares mais gélidos das metrópoles, como se àquelas pequenas comunidades coubesse o peso de toda a culpa do mundo. Longe dos julgamentos exteriores, é dentro de si mesma que cada pessoa em cena encontra satisfações e justificativas perante si e também de Deus – não por menos, a protagonista de O Viajante vez ou outra fala com algum ser ausente, tentando compreender o que motiva seus atos e quais consequências estão a caminho.

Esse modo “cardosiano” de colocar os personagens num impasse com a espiritualidade já era percebido na transposição do grande romance de Lúcio, Crônica da Casa Assassinada (1959). Roteirizado pelo próprio Saraceni e renomeado simplesmente como A Casa Assassinada, o filme reconstruía, pela arquitetura de um casarão antigo (o mesmo, aliás, onde o escritor se hospedara para desenvolver o livro), a efervescência sentimental e a complexidade das relações de uma família do interior de Minas Gerais a partir do questionamento essencial sobre o destino inexorável de figuras desenhadas para cumprirem um papel social e religioso bem delimitado. A chegada de Ana, mulher moderna vinda do Rio de Janeiro para ser esposa de um dos membros da tradicional família Meneses, tumultua o universo até então (e falsamente) harmônico da casa. Tanto livro quanto filme narram a derrocada de um tempo (histórico, político e social) diante da ascensão de outro, mostrando, através da fissura causada pela nova ordem incorporada em Ana, as feridas purulentas de uma aristocracia envelhecida e decadente. O destino de Ana, trágico como cabe às mulheres fortes da literatura de Lúcio Cardoso, se aproxima do sacrifício (ou do “assassinato” da casa), para que a mudança incontornável possa, afinal, acontecer aos Meneses.

No caso de O Viajante, é outra Ana a encabeçar o enredo, no cinema interpretada por Marília Pêra. Ana de Lara é viúva rica e solitária numa pequena cidade, onde se divide entre os compromissos religiosos e os cuidados com o filho doente. Sexualmente reprimida, ela sente no forasteiro Rafael (Jairo Mattos) a fagulha de uma nova vida, mais libertária e cálida, mais física e menos espiritual. O começo da tragédia se ensaia no encontro de Ana com Rafael, momento fortuito e aparentemente destituído de relevância, ao acaso, na rua, após a tradicional missa na igrejinha local. O olhar da mulher pousa sobre o homem e dali se desenrolará o fio rumo ao inferno. Paralelamente, Rafael se envolve com Sinhá (Leandra Leal), adolescente, virgem e suscetível aos encantos do andarilho galanteador. A garota é também a obsessão de Mestre Juca (Nelson Dantas), tio que significativamente tem como profissão construir caixões fúnebres de madeira.

Se A Casa Assassinada tinha a mansão como cenário de seus dramas, O Viajante se espalha por outros ambientes, a maior parte deles externa. Não apenas a casa de Ana de Lara (em especial a sala, onde ela esconde o filho atrás de um véu vermelho) serve para refletir os sentimentos dos personagens, mas também a paisagem natural de morros, mata, pedras e estradas; e a igreja local, espaço de oração que será o ringue de guerra entre Ana e Deus. Estamos aqui no mesmo terreno por onde já trafegaram Carl Dreyer (A Paixão de Joana D’Arc), Roberto Rossellini (Stromboli), Robert Bresson (Mouchette) e Maurice Pialat (Sob o Sol de Satã): o da via-crúcis espiritual e cósmica modelada pela inquietação íntima e catalisada pela transição e ação dos corpos e do instinto.

É um cinema no qual se pode sentir a urgência de um sentimento, a angústia de uma perda, o ódio e a repulsa a uma desilusão, a resignação de uma morte inesperada e sacrificial, a dúvida sobre a participação de Deus no destino dos seres. A fé se torna questionável aos personagens: por que ter fé? Ou melhor: como ter fé quando tudo ao redor parece ir contra as minhas vontades? Mesmo no limite, porém, a fé não desaparece – ela é apenas colocada em xeque, sem por isso perder o sentido. Só se pode ter conflito com aquilo no que se acredita. Em O Viajante, ao concluir que Rafael violentou Sinhá (informação que o filme nunca confirma), Ana de Lara grita e agride a imagem de Jesus Cristo num altar da igreja para, logo em seguida, ajoelhar-se e sussurrar: “Se Deus não existisse, o peso do nada esmagaria meus ombros cansados. Perdão, Senhor!”. A consciência de Ana sobre a existência de Deus está na sobrevivência dela às provações que esse mesmo Deus lhe envia.

viajante1A fotografia de Mário Carneiro – lendário parceiro de Saraceni desde seu primeiro curta-metragem, Arraial do Cabo (1960) – arquiteta as imagens de O Viajante através de rasgos visuais percebidos em reflexos, portas entreabertas e cortinas em movimento. O reflexo, em especial, surge de duas maneiras distintas e igualmente potentes: uma desiludida Ana, esperando Rafael chegar, olha-se no espelho, enquanto a câmera enquadra seu rosto de um lado e apenas a metade do outro, criando uma cisão interna e externa na personagem num momento de expectativa e desejo; adiante, Ana, em crise de fé após jogar o filho de um despenhadeiro, pára diante de um rio e roga a Deus que a compreenda: vemos seu corpo de pé, orando aos céus, enquanto a água a reflete em posição invertida, imagem que ganha força momentos depois, quando Ana retira a roupa formal e beata para se vestir como uma mulher da noite de cabelos soltos, maquiagem pesada e sensualidade assumida.

A liberdade de Paulo Cezar Saraceni em O Viajante é total. Temos aqui um filme de invenção dialogando abertamente com o melodrama e a tragédia clássica, sem qualquer tipo de compromisso com um suposto realismo diminuidor de sua expressividade. Saraceni não teme parecer literato em alguns diálogos e nem se censura a quebrar a ilusão de “realidade” e deixar a imagem pulsar de maneira particular e única, como se cada plano fosse a materialidade de vários sentimentos. Não existe um narrador nem um ponto de vista específico em O Viajante: quem narra é a câmera e a montagem, é a imaginação criadora do cineasta, disposta a tudo para que surja uma experiência verdadeiramente transcendente.

Montado por Maria Elisa Freire, o filme se fragmenta como o viajante do título, cujas errâncias pelas pequenas cidades atrai, em igual proporção, a paixão e o desastre. As cenas se desencadeiam como se puxadas por elementos que as construíram antes ou depois, mas não durante. Não se trata de uma narrativa de causa-efeito, mas de efeito-efeito; a delimitação do que se conta não é temporal, mas emocional: se, numa cena, Ana conversa com o filho, na cena seguinte veremos seu desespero após matar o garoto, mesmo que ainda não saibamos o motivador do sofrimento. O Viajante é composto de instantâneos, num fluxo de situações construídas por vários microuniversos que formam o grande painel apenas no final – e pelo qual já se vai sentindo toda a carga a cada nova cena. Saraceni, assim, transfigura a narrativa literária de Lúcio Cardoso, caracterizada por esses saltos entre as situações na busca por sentimentos nem sempre muito claros à primeira vista e que serão reconfigurados na medida em que os personagens se revelam. É um olhar divino, que tudo sabe e tudo vê sem necessariamente nos deixar a par de cada detalhe. A onisciência está em saber, não em informar.

O filme segue as duas mulheres atraídas pelo mesmo forasteiro e a idealização em torno dele. Ao mesmo tempo em que Rafael parece o diabo deflagrador das catástrofes, com fala mansa e mefistotélica, nada nos dá certeza de sua culpa nem inocência. A aproximação de Rafael na vida de Ana e Sinhá se configura diferente da forma como Ana e Sinhá enxergam a aproximação de Rafael. Para ele, flanando sem rumo nem destino certo pelo mundo, as mulheres são potenciais amantes numa pequena cidade interiorana; para elas, ele é a esperança de recomeço sem recalque (Ana) e a descoberta do desejo e perda da inocência (Sinhá). Nos dois casos, essa fé unilateral – talvez crente apenas numa cumplicidade (inexistente) com a figura de Deus – é o abismo de ambas. Ana mata o filho por enxergá-lo como o último laço com a velha vida; Sinhá é dominada pela culpa de ser deflorada por Rafael e descumprir a promessa feita ao tio. O filho de Ana cai de um despenhadeiro (rumo ao inferno?) para ser devorado por urubus; Sinhá se permite ser golpeada por um machado, e seu sangue se esvai para cima (rumo ao céu?), simbolizado por dezenas de balões que definem a ascensão e eternização de sua pureza. O encontro entre Ana e Mestre Juca, dentro da cela de prisão após todos os eventos, sela um pacto: o único responsável é Rafael, tratado agora como um demônio invasivo daquele espaço até então em paz. Saraceni e Lúcio Cardoso criam a ironia de que as relações na pequena cidade serão agora diferentes, ainda que aparentem permanecer iguais.

O Viajante é um filme inesgotável, e suas possibilidades são tão infinitas quanto seu encanto. Na dificuldade de defini-lo para além da beleza, fiquemos com as palavras de Jean-Luc Godard, num artigo de 1958, ao se referir aos filmes que amamos: “Como a estrela-do-mar que se abre e se fecha, eles [estes filmes] sabem oferecer e esconder o segredo de um mundo do qual são ao mesmo tempo o único depositário e o fascinante reflexo. A verdade é a sua verdade. Eles a carregam na profundeza de si mesmos e, no entanto, a tela se rompe a cada plano para semeá-la a todos os ventos. Dizer deles que são os filmes mais belos de todos é dizer tudo. Por quê? Porque é assim”.

PS: Na inexistência de O Viajante em VHS ou DVD e devido à sua ausência na recente programação do Canal Brasil, os interessados em assistir ao filme podem acessar este endereço: http://youtu.be/Ifj2XvirD3A

Sobre Luciana Romagnolli

Curitibana. Jornalista. Doutora em Teatro pela USP. Psicanalista.

Deixe um comentário

Informação

Publicado em novembro 9, 2015 por em Uncategorized.

Navegação

Guia de TI

O maior portal de cursos, capacitação e educação em tecnologia e desenvolvimento do Brasil.

Luciana Romagnolli

Arte e psicanálise.

horizontedacena

Crítica de teatro